Era a primeira semana de outubro, o Brasil ainda tinha média de 600 mortes diárias por covid, quando um grupo de aproximadamente 80 médicos se reuniu em um resort na paradisíaca praia de Arraial D’Ajuda, em Porto Seguro, para “trocar experiências” sobre o chamado tratamento precoce. O evento, além de discutir o uso de drogas ineficazes contra a doença, também serviu de palanque político para alguns.
A organizadora do encontro, a médica Raíssa Soares, aproveitou para fazer campanha para o candidato Jânio Natal (PL), que concorria à prefeitura da cidade baiana. O político foi eleito semanas depois e nomeou Raíssa como sua secretária da Saúde. A médica, que já havia sido convidada pela Presidência da República a discursar em evento sobre a pandemia no Planalto em agosto, agora avalia concorrer ao cargo de governadora da Bahia em 2022.
Na mesma semana, também num município baiano, outro líder dos médicos que defendem o “tratamento precoce” aproveitava a crescente popularidade nas redes sociais para divulgar a candidatura a vereador de Feira de Santana pelo Patriotas. Em seu perfil no Instagram, o cirurgião Eduardo Leite, um dos coordenadores da Associação Médicos pela Vida (principal entidade de defesa do tratamento precoce), fazia postagens pedindo votos, defendendo o presidente Bolsonaro e até questionando os números de mortos pela covid e chamando a pandemia de “fraudemia”.
Assim como Raíssa e Leite, alguns dos principais médicos “influenciadores” do uso de drogas sem eficácia contra a covid aproveitaram a fama nas redes sociais e em suas cidades para se candidatar ou ocupar cargos políticos ou públicos e fortalecer redes e canais a favor de Bolsonaro. O Estadão identificou ao menos quatro médicos defensores dos remédios inócuos que participaram das eleições de 2020. Além de Leite, outro coordenador da associação também se candidatou a vereador. Jandir Loureiro concorreu a uma vaga na Câmara Municipal de Rio Bonito (RJ) pelo Pros. Nenhum dos dois foi eleito.
Outra adepta do tratamento precoce que amargou uma tentativa frustrada de entrar para a política foi a endocrinologista Annelise Meneguesso, que não conseguiu se eleger vice-prefeita de Campina Grande (PB) pelo PSL. Seu colega de partido, o médico Pedro Melo, teve mais sorte. O ortopedista, também defensor dos medicamentos do kit covid, foi eleito vereador da cidade de Porto Ferreira, no interior de São Paulo.
Em uma live transmitida em março no canal da Associação Médicos pela Vida, ele admitiu que suas contas criadas nas redes sociais para “orientar a população sobre o tratamento precoce” o ajudaram a se eleger. “Usei essa plataforma, não vou dizer que não, para a minha eleição a vereador da cidade. Isso me trouxe logicamente uma visualização maior nas redes sociais e fui eleito em novembro passado”, contou.
Na mesma transmissão, ele diz que atende os pacientes com covid pelo WhatsApp e faz de 20 a 30 receitas de tratamento precoce por dia. O ortopedista conta ainda que estudou muito “no Google e no YouTube” sobre a doença, além de buscar mais informações com colegas sobre o pulmão, visto que sua especialidade não está habituada a lidar com doenças respiratórias. “Eu aprendi a ver as imagens, eu fui ao radiologista da cidade vizinha e procurei ver imagens porque fazia tempo que eu não estudava tanto o pulmão”, relatou.
Apoio ao presidente
Mesmo alguns médicos que não tentaram cargo político, mas que são “influenciadores” pró-tratamento precoce têm forte ligação com o bolsonarismo e usam sua popularidade nas redes sociais para exaltar o presidente e criticar seus rivais. O recém-formado médico alagoano Marcos Falcão, que recebeu muitas críticas em março ao divulgar um número de WhatsApp e falar que prescreveria o tratamento precoce por telemedicina para todo o País, mantém desde 2014 um canal de direita com 207 mil seguidores. Na plataforma, ele defende Bolsonaro e ataca figuras políticas vistas como adversárias do presidente, como o governador João Doria (PSDB) e o ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia.
A visibilidade também ajudou o médico, que obteve o seu CRM há quatro meses, a ampliar o número de pacientes. Em seu canal no Telegram, ele disse que, desde que divulgou o número do seu WhatsApp, já foi procurado por mais de 2 mil interessados no atendimento. Ele também consultou seus seguidores sobre a possibilidade de se candidatar a deputado nas próximas eleições.
Profissionais dizem separar prática e política
Procurados pelo Estadão, alguns dos médicos adeptos do tratamento precoce que se candidataram a cargos públicos justificaram que a entrada na vida política nada teve a ver com a visibilidade que tiveram ao defender os medicamentos ou com o apoio ao presidente Jair Bolsonaro, ele próprio um defensor de remédios como a hidroxicloroquina.
Eduardo Leite, de Feira de Santana, afirmou que sua decisão de tentar um cargo público já havia sido tomada antes da pandemia, após optar por se aposentar da carreira médica. Ele disse ainda que não se aproveitou de sua posição profissional para conseguir votos. “Eu fechei meu consultório durante a campanha. Não fiquei oferecendo consultas em troca de votos, como alguns fazem”, declarou.
Leite afirmou ainda que, embora seja eleitor e apoiador do presidente Jair Bolsonaro, preferia que o presidente não falasse sobre tratamento precoce para que política e medicina não se misturem. “Nem presidente nem governador nem prefeito deveriam falar”, disse.
Sobre a postagem em que chama a pandemia de “fraudemia”, ele negou que tenha minimizado a gravidade da crise sanitária e disse que se referia à forma que alguns governantes estavam usando a pandemia em nome de interesses próprios.
Annelise Meneguesso, de Campina Grande, também declarou que sua relação com a política é mais antiga e sua candidatura a vice-prefeita nem era prevista. “Sou presidente do PSL na minha cidade, fui líder do Movimento Vem pra Rua, mas não estava nos meus planos me candidatar. Só aceitei porque o candidato a vice teve um problema pessoal de última hora”, relata.
Ela afirmou que, apesar de apoiar algumas ações de Bolsonaro, isso não influencia sua prática médica. “Eu realmente compactuo com algumas ideias do presidente, mas acredito que o médico que adote qualquer medida por viés político ou ideológico está ferindo seu juramento. A gente tem de sempre pensar no paciente.”
Raíssa Soares, de Porto Seguro, foi contatada pelo Estadão por meio de seu assessor pessoal, mas ele não respondeu sobre o pedido de entrevista. Pedro Melo, de Porto Ferreira, também foi contatado por telefone e mensagem, mas deixou de responder quando foi informado sobre o teor da reportagem. O Estadão não conseguiu contato com os médicos Jandir Loureiro, de Rio Bonito, e Marcos Falcão, de Maceió.