A população da cidade de São Paulo está dividida em relação à eficácia das operações realizadas na região da cracolândia, no centro da capital paulista.
Segundo pesquisa do Datafolha sobre o crack na cidade, enquanto 49% dos moradores de São Paulo concordam com a frase “a operação na cracolândia irá fazer com que os usuários busquem tratamento”, 48% discordam dela.
O percentual daqueles que concordam com a frase é maior entre os mais jovens (54%), os menos escolarizados (64%), os mais pobres (57%) e os evangélicos (55%). Entre os que mais discordam estão aqueles com curso superior (61%) e renda mais alta.
A pesquisa Datafolha entrevistou, nos dias 5 e 6 de abril, 840 pessoas na capital paulista. A margem de erro é de três pontos, para mais ou para menos.
A pesquisa também aponta que a maioria (66%) dos paulistanos concorda tanto com a afirmação de que “a situação dos usuário de crack é um problema de saúde pública” quanto com aquela que diz ser “um problema de segurança pública”. Isoladamente, as frases tiveram 77% e 74%, respectivamente, de concordância.
Nas operações ocorridas ao longo dos anos na cracolândia, as imagens de correria, tiros de bala de borracha e bombas de efeito moral invariavelmente resultaram na dispersão imediata da aglomeração de usuários, seguida da reacomodação do grupo nas redondezas.
“As operações até agora foram de curto prazo e sem muito foco”, avalia o psiquiatra Ronaldo Laranjeira, professor titular da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e diretor da Uniad (Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas).
“Todos os governos foram igualmente incompetentes em oferecer uma solução de médio e longo prazo para a cracolândia. Tratar um problema complexo de uma forma simples não resolve um fenômeno social que envolve crime organizado e pessoas com transtornos mentais e dependência química”, avalia ele, que estima haver cerca de 2.000 pessoas na principal das cracolândias da cidade, atualmente instalada na praça Princesa Isabel.
Para a socióloga Nathália Oliveira, cofundadora da Iniciativa Negra por Uma Nova Política de Drogas, “a sociedade cada vez mais está convencida de que as operações violentas não são solução para o crack”. “A melhora no debate público mostrou que essas operações são como enxugar gelo”, avalia ela.
Oliveira aponta para a falta de articulação das instituições públicas e esferas de poder, o que, na sua visão, coloca em risco “um investimento já feito”. “A rede de serviços de saúde e de assistência social se mudou para aquele território porque a cena de consumo ocorria ali”, lembra.
“Quando há dispersão de usuários, ocorrem dois problemas: usuários problemáticos ficam com mais dificuldade de buscar tratamento, porque não enxergam o Estado como um garantidor de direitos, e quem já se tratava ali e é forçado a migrar pode perder seu acompanhamento e ficar ainda mais vulnerável”, completa.
A pesquisa Datafolha revelou que a maioria dos paulistanos (65%) concorda que, “para abandonar o crack, os usuários precisam mais de força de vontade do que tratamento”, um dado que chamou a atenção de especialistas em dependência química ouvidos pela reportagem.
“Faz décadas que nós combatemos, tecnicamente, a descrença no tratamento e a maneira como se coloca toda a responsabilidade pela interrupção do uso de álcool e drogas em cima da força de vontade da pessoa”, explica o psiquiatra André Malbergier, coordenador do Grea (Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Droga) do Hospital das Clínicas de São Paulo.
Segundo ele, a ideia da força de vontade remete à possibilidade de uma escolha. “Só motivação não é suficiente. Se alguém se entusiasmar em parar de usar uma droga, há chances de sucesso, mas elas aumentam muito significativamente com a conjugação da motivação com o tratamento”, afirma.
“Devemos brigar por tratamento suficiente para todo mundo, e exigir qualidade. Aí tem um papel governamental importante de estabelecer regras e critérios das políticas e de tornar os tratamentos acessíveis a todos.”
Questionados pelo Datafolha sobre quem é o principal responsável pelos problemas que envolvem o crack em São Paulo, os paulistanos apontaram para os traficantes (27%) e os próprios usuários (22%), somando quase metade dos entrevistados (49%), seguidos do governo estadual (20%), federal (11%) e municipal (7%).
“O dado, para mim, mostra como a lógica da guerra às drogas, de inimigo interno, deu certo por aqui”, afirma Oliveira. “Estamos retirando a responsabilidade dos governos.”
Para ela, “é o Estado quem deve mobilizar vontade política e recursos para garantir direitos e dignidade, diminuindo incentivos para ações repressivas violentas contra usuários”.
Maria Angélica Comis, coordenadora de advocacy do Centro de Convivência É de Lei, organização que atua na região central da cidade junto a usuários de crack, afirma que é preciso revisitar a política de drogas na cidade para “diminuir a desigualdade social e garantir direitos fundamentais de saúde, moradia e educação”.
“O problema do crack no Brasil é de saúde pública e de direitos humanos. Os dados epidemiológicos de consumo de crack são infinitamente menores do que do uso de álcool. E a gente não chama a rua Augusta [também na região central da cidade, conhecida por seus bares] de alcoolândia nem cerca ela de polícia”, destaca.
“A tolerância em relação às substâncias lícitas é muito superior, o que envolve um grau de hipocrisia já que são elas as que causam os maiores danos sociais”, opina.